domingo, 16 de outubro de 2016

ARISTÓTELES: A FELICIDADE COMO SABEDORIA PRÁTICA

 Por Michel Aires de Souza
Aristóteles (384-322 a.C) nasceu em Estagira (Macedônia). Seu pai era médico do rei Felipe da Macedônia. É considerado, juntamente com Sócrates e Platão, um dos mais influentes filósofos gregos do mundo ocidental.  Foi aluno de Platão e educou Alexandre, o Grande. Criou o pensamento lógico e a biologia como ciência.  “Em suas obras sobre a natureza, Aristóteles tentou descobrir uma hierarquia de classes e espécies (…). Ele estava convencido de que a natureza tinha uma finalidade e que cada traço específico de um animal existia para cumprir uma determinada função”. (Strathern, 1997, p.24).  Dessa forma, Aristóteles foi o primeiro filósofo a valorizar a observação e a experiência em seus estudos e, por isso, pode ser considerado o pai do método científico.
Aos 17 anos foi para Atenas, o maior centro filosófico e artístico de toda antiguidade, matriculou-se na escola de Platão, e lá permaneceu por vinte anos, até 347 a.C. Após a morte de seu mestre fundou sua própria escola, o Liceu. Ao contrário da Academia, que valorizava o pensamento teórico, o Liceu privilegiava as ciências naturais. Dirigiu o liceu até 324 A.C. Com a morte de Alexandre , surgiram sentimentos xenófobos, antimacedônicos,  em Atenas, sentindo-se ameaçado Aristóteles fugiu, afirmando não permitir que a cidade cometesse um segundo crime contra a filosofia, assim como cometerá com Sócrates. Apesar de sua escola ter privilegiado as ciências naturais, Aristóteles também pensou os problemas políticos e sociais de sua época, assim como se debruçou sobre os problemas éticos e morais.  Em seu livro, “Ética e Nicomaco” Aristóteles, pensou profundamente sobre a felicidade humana. 
       Para Aristóteles,  a felicidade não está ligada aos prazeres ou as riquezas, mas a atividade prática da razão. Em sua opinião,  a capacidade de pensar é o que há de melhor no ser humano, uma vez que a razão é nosso melhor guia e dirigente natural.   Se o que caracteriza o homem é o pensar, então esta e sua maior virtude e, portanto, reside nela à felicidade humana.  “Aristóteles, fiel aos princípios de sua filosofia especulativa, e após ter feito uma análise e um estudo da psicologia humana, verifica que em todos os seus atos o homem se orienta necessariamente pela ideia de bem e de felicidade e que nenhum dos bens comumente procurados (a honra, a riqueza, o prazer) preenche esse ideal de felicidade. Daí a sua conclusão: primeiro, a felicidade humana deverá consistir numa atividade, pois o ato é superior a potência; segundo, deverá ser uma atividade relacionada com a faculdade humana mais perfeita que é a inteligência (…)”. (Costa,1993, p.67) 
        Em seu livro, “Ética e Nicômaco”,  Aristóteles mostra-nos que os homens se tornam o que são pelo hábito. Os homens se tornam bons engenheiros  construindo, e se tornam músicos tocando, da mesma forma um homem torna-se justo praticando atos justos e mal praticando atos maus. Um homem torna-se um bom ou mau músico por tocar bem ou mal. Um escritor torna-se um bom ou mau escritor por escrever bem ou mal. Assim como um mau músico não tem o hábito de tocar, também o mau escritor não tem o hábito de pensar e escrever.   Dessa forma, para se tocar música ou escrever bem é necessária a excelência, é necessário o engajamento, é necessário o hábito. A prática continua de uma atividade ou de um comportamento nos possibilita internalizar aquele hábito. Somente a prática leva a excelência. Esse raciocínio serve para todas as atitudes e atividades humanas. Pelo hábito de sentir receio ou confiança tornamo-nos covardes ou corajosos. O mesmo se aplica aos desejos e a raiva, por se comportarem da mesma forma e do mesmo modo em todas as circunstâncias algumas pessoas tornam-se moderadas e amáveis, outras se tornam concupiscentes ou irascíveis. É por isto que devemos fazer uso da razão em nossas escolhas e atividades. Devemos sempre desenvolver nossas atitudes e atividades de uma maneira racional.          
       A felicidade para Aristóteles corresponde ao hábito continuado da prática da virtude e da prudência. Por sua própria natureza os homens buscam o bem e a felicidade, mas esta busca só pode ser alcançada pela virtude. A virtude é entendida como Aretê – excelência. É somente através do nosso caráter que atingimos a excelência. A boa conduta, a força do espírito, a força da vontade guiada pela razão nos leva à excelência. Dessa forma, a felicidade está ligada a uma sabedoria prática, a de saber fazer escolhas racionais na vida. É feliz aquele que escolhe o que é mais adequado para si. 
        A razão é a faculdade que analisa, pondera, julga, discerne. Ela nos permite  distinguir o que é bom ou mau,  a distinguir os vícios das virtudes. Ela  nos permite fazer escolhas pertinentes para nossa felicidade. Por exemplo, a temeridade é um vício por excesso, a covardia é um vício por falta; o meio termo é a coragem, que é uma virtude. O orgulho é um vício por excesso,  a humildade um vício por falta; o meio termo é a veracidade, que também é uma virtude. A inveja é um vício por excesso, a malevolência é um vício por falta; o meio termo é a justa indignação. Para Aristóteles toda escolha exige uma mediania, um equilíbrio entre o excesso e a falta.  Na vida não podemos ser imprudentes e impulsivos se arriscando em situações perigosas. Por outro lado,  também não podemos ser covardes e ter medo de tudo deixando que o medo nos domine. É necessário o meio termo entre esses dois sentimentos, devemos enfrentar os medos e perigos sabendo agir com bom senso. O mesmo raciocínio serve para alimentação, não podemos comer muito para passar mal do estômago, assim como não podemos evitar comer, pois também vamos adoecer. Devemos comer com moderação. Por esta ótica, também podemos pensar os sentimentos.  Na vida não podemos ser vaidosos preocupando-nos apenas com nossas qualidades, satisfazendo sempre o nosso ego. Por outro lado, também não podemos ser muito modestos, achando que somos inferiores. É necessário auto-estima, sabendo reconhecer através da razão nossos defeitos e nossas qualidades. Para Aristóteles, portanto, devemos sempre escolher o meio termo, sendo moderados em tudo o que fazemos na vida. Somente assim atingiremos o bem e a felicidade.    
Bibliografia
Aristóteles. Ética a Nicômaco. Edipro, São Paulo, 2007.
Costa, José S. Tomás de Aquino: a razão a serviço da fé. São Paulo: Moderna, 1993.
Stratheer, Paul. Aristóteles em 90 minutos.  Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1997.


Fonte deste artigo: https://filosofonet.wordpress.com/2011/07/02/aristoteles-a-felicidade-como-sabedoria-pratica/ 

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

OS ECONOMISTAS AUSTRÍACOS QUE REFUTARAM MARX E SUA TESE DE QUE O TRABALHO ASSALARIADO É EXPLORAÇÃO



Políticos adoram declarar publicamente que sabem qual é o valor do salário mínimo que qualquer trabalhador no país deveria receber.  Só não explicam como chegaram a esse valor e nem muito menos por que o valor escolhido não pode ser $1 maior ou menor.
Adicionalmente, todos eles têm uma certeza: empresários, empreendedores e capitalistas são exploradores sem coração que se aproveitam da mão-de-obra de alguns de seus trabalhadores não lhes pagando a "quantia justa" que seu trabalho genuinamente merece.
O que está por trás deste pensamento sobre o valor "razoável" ou "justo" do salário mínimo é o fantasma de um pensador que há muito tempo pensava-se que teria sido relegado à lata de lixo da história: Karl Marx (1818-1883).
A teoria do valor-trabalho de Marx para o valor de um trabalhador
A concepção de Marx a respeito da "escravidão salarial" injusta que os capitalistas e empreendedores impunham a seus trabalhadores tornou-se a premissa e o grito de guerra que resultaram nas revoluções comunistas do século XX, com toda a sua destruição e terror.
Marx insistia em que o "valor real" de qualquer bem produzido era determinado pela quantidade de trabalho empregado na sua fabricação. Se a produção de um par de sapatos consome quatro horas de trabalho, e se são necessárias duas horas de trabalho para preparar e assar um bolo, então a "taxa de câmbio" justa entre essas duas mercadorias deveria ser a de um par de sapatos por dois bolos. Dessa maneira, esses dois bens seriam trocados a uma taxa que representa quantidades comparáveis do tempo de trabalho gasto para produzi-los.
Se o trabalho de um operário produziu, digamos, três pares de sapatos durante uma jornada de trabalho de doze horas, então o trabalhador tem o justo direito à propriedade dos três pares de sapatos produzidos pelo seu trabalho, de modo que ele poderia trocá-los pelos produtos que quisesse adquirir dos outros trabalhadores.
Contudo, insistia Marx, o capitalista que contratou o trabalhador não lhe paga um salário igual ao valor dos três pares de sapatos que este produziu. Isso ocorre, segundo Marx, simplesmente porque o capitalista é o proprietário da fábrica e das máquinas (a fábrica e as máquinas são a propriedade privada que o trabalhador utilizou para produzir esses sapatos).  Logo, estando estes bens de produção em propriedade do capitalista e não do trabalhador, o trabalhador tem de se sujeitar às demandas do capitalista, aceitando assim entregar ao capitalista uma fatia daquilo que sua mão-de-obra produz — caso contrário, morrerá de fome no frio.
O empregador paga ao trabalhador um salário somente igual a, digamos, dois pares de sapatos, desta forma "roubando" uma parte do seu trabalho.
Assim, na concepção de Marx, o valor de mercado do terceiro par de sapatos do qual o capitalista se apropriou a partir do trabalho do trabalhador seria a fonte de seu lucro, ou o ganho líquido sobre os custos de contratar o trabalhador.
Eis aí a origem da noção marxista de "renda imerecida", que seria a renda que não decorre de ter de trabalhar e produzir, mas simplesmente de se ser o proprietário de um negócio privado que emprega trabalhadores que realmente fazem todo o trabalho.
O capitalista, como você vê, não faz nada. Vive do trabalho dos outros, enquanto fica sentado em seu escritório, com seus pés sobre a escrivaninha, fumando um charuto (quando ainda era "politicamente correto" fazer isso). Não é de se surpreender, diante deste raciocínio sobre o trabalho, os salários e o lucro, que políticos e intelectuais não tenham apreço por capitalistas e empreendedores.
Carl Menger e o valor subjetivo das coisas
Karl Marx morreu em 1883, aos 64 anos de idade. Uma década antes de sua morte, no início dos anos 1870, sua teoria do valor-trabalho foi derrubada por diversos economistas. O mais importante deles foi o economista austríaco Carl Menger (1840-1921) em seu livro de 1871, Princípios de Economia Política.
Menger explicou que o valor de um bem não deriva da quantidade de trabalho despendida em sua fabricação. Um homem pode gastar centenas de horas fazendo sorvetes de lama, mas se ninguém atribuir qualquer serventia a estes sorvetes de lama — e, portanto, não os valorizar o suficiente para pagar alguma coisa por eles —, então tais produtos não têm nenhum valor, não obstante as centenas de horas gastas em sua fabricação.
Assim como a beleza, o valor — como diz o velho provérbio — está nos olhos de quem vê. O valor de um bem é subjetivo: depende do uso e do grau de importância pessoal (subjetiva) que alguém confere a esse bem (seja ele uma mercadoria ou um serviço).  Se o bem servir para algum fim ou propósito, então terá valor para ao menos uma pessoa.
Bens, ao contrário do que diz a teoria marxista, não têm valor por causa da quantidade de trabalho consumida em sua produção. Por outro lado, uma determinada habilidade de trabalho pode ter grande valor caso seja considerada útil (como um meio produtivo) para se alcançar um objetivo que alguém tem em mente.
Adicionalmente, o valor de bens idênticos decresce à medida que a quantidade delas aumenta.  E isso ocorre porque atribuímos a cada quantidade adicional de um mesmo bem à nossa disposição um propósito menos importante do que o propósito já atribuído para as unidades previamente adquiridas desse bem.
Por exemplo, à medida que acrescento camisas idênticas ao meu guarda-roupa, cada camisa extra em geral terá menos importância para mim do que as mesmas camisas que comprei anteriormente. Os economistas chamam isto de "utilidade marginal decrescente dos bens".
Ninguém paga por um bem mais do que aquilo que considera que ele vale
Assim, não há um valor mínimo "objetivo" que seja inerente ao ato de trabalhar. Um empregador contrata trabalhadores porque estes irão ajudá-lo a produzir um produto que acredita que poderá vender a potenciais consumidores. Na medida em que o empregador contrata trabalhadores com as mesmas habilidades específicas, cada um desses trabalhadores é alocado para uma tarefa menos importante do que aquela para a qual o trabalhador anterior, de mesma habilidade, foi contratado.
Como consequência, nenhum empregador pode pagar ou irá pagar mais por algum trabalhador do que aquilo que acredita que seus serviços valem (em termos de agregar valor às suas atividades de produção).  
Sendo assim, o valor de um trabalhador depende do tanto que o empregador acredita que o bem produzido vale para o público consumidor, que é quem decide comprar — ou se abster de comprar — o bem que o trabalhador ajuda a produzir.
Suponha que um empregador acredite que algumas das pessoas de sua força de trabalho contribuem com não mais do que $ 6 por hora para fabricar um produto que ele espera vender aos consumidores. Se o governo lhe disser que ele tem a obrigação legal de pagar a cada um de seus trabalhadores um salário mínimo que não pode ficar abaixo de $ 7,40 ou $ 10,10 por hora, não será nada surpreendente se ele optar por dispensar aqueles trabalhadores que considera custarem mais do que produzem.
Adicionalmente, outros empregos que poderiam estar disponíveis por $ 6 por hora nunca chegarão a existir.
Tudo o que um salário mínimo decretado pelo governo consegue fazer é expulsar do mercado de trabalho aqueles trabalhadores cuja contribuição para a fabricação de um produto é menor do que o valor que o governo determinou que deve ser pago a eles.
Mas o que o empregador faz exatamente? No que ele contribui para o processo de produção, para além do trabalho feito pelos empregados contratados? Marx, conforme vimos, argumentou que o "lucro" do capitalista seria o valor daquela fatia da produção do trabalhador que foi apropriada pelo empregador simplesmente pelo fato de ele ser proprietário do empreendimento no qual o trabalhador está empregado.
Böhm-Bawerk e a importância da poupança para a geração de empregos
Outro economista austríaco, Eugen von Böhm-Bawerk (1851-1914), que desenvolveu muitas das ideias que se originaram com Carl Menger, respondeu a Marx.
Em uma importante obra em três volumes intitulada Capital and Interest (1914), e em diversos ensaios, dos quais os mais importantes foram "Unresolved Contradiction in the Marxian Economic System" (1896) e "Control or Economic Law" (1914), Böhm-Bawerk perguntou: de onde vêm os empreendimentos nos quais os trabalhadores são empregados? E de onde vêm os recursos que garantem o pagamento dos salários dos trabalhadores?
Como a fábrica foi construída? De onde vem o capital — as máquinas, ferramentas e equipamentos — das fábricas, com o qual os trabalhadores contratados realizam seu trabalho para produzir os bens que eventualmente estarão disponíveis para os consumidores comprarem?
A resposta de Böhm-Bawerk foi que alguém necessariamente teve de poupar uma parte dos rendimentos obtidos no passado para, então, utilizar esses recursos poupados na construção da empresa e no seu aparelhamento com todos os bens de capital necessários, sem os quais o trabalho de qualquer trabalhador seria consideravelmente muito menos produtivo, com muito menos quantidades produzidas, e muito mais imperfeito em sua qualidade.
O empreendedor que inicia um empreendimento tem necessariamente de ou ter economizado os fundos necessários para cobrir suas próprias despesas de investimento ou ter tomado emprestado de outros que pouparam o necessário. Alguém teve necessariamente de se sacrificar, de abrir mão do consumo no presente para que essas economias estejam disponíveis no futuro para financiar o empreendimento.  Quando o empreendimento for feito, ele poderá então gerar um retorno financeiro no futuro, quando o produto houver sido fabricado e for vendido.
Um indivíduo só irá abrir mão do seu consumo no presente se ele for suficientemente compensado com um ganho futuro que faça valer a pena abrir mão desse consumo e prazer no presente.  Poupança é sacrifício e esse sacrifício tem de ser compensado.
É por isso que são pagos juros.  Juros são o preço pago a alguém que optou por abrir mão do consumo presente para, com isso, obter um valor maior no futuro.  Juros são o preço que arbitram se os recursos serão consumidos no presente ou investidos para o futuro.  Juros são o preço que os poupadores recebem no futuro por sacrificarem satisfações mais imediatas do presente, até que as quantias emprestadas sejam pagas de volta.
E o tomador de empréstimo paga esses juros porque ele valoriza mais o uso que fará do dinheiro e dos recursos que toma emprestado hoje do que todo o juro que pagará pelo empréstimo no futuro.
Empreendedores e capitalistas poupam os trabalhadores de terem de esperar pelos seus salários
O fato de empreendedores terem esses recursos à disposição — sejam eles oriundos de sua própria poupança passada ou de terem pegado emprestado a poupança de terceiros — significa que aqueles que ele emprega não terão de esperar até que os bens sejam produzidos e realmente vendidos para receberem seus salários pelo trabalho que realizaram durante o período de produção.
O empregador, em outras palavras, "adianta" aos trabalhadores o valor de seus serviços enquanto o processo de produção está em andamento, precisamente para aliviar seus empregados de terem de esperar até que as receitas da venda dos produtos aos consumidores sejam recebidas no futuro.
O fato de o trabalhador não receber o "valor total" da produção futura simplesmente reflete o fato de que é impossível o homem trocar bens futuros por bens presentes sem que haja um desconto no valor. O pagamento salarial representa bens presentes, ao passo que os serviços de sua mão-de-obra representam apenas bens futuros.
Com efeito, é por isso que é correto dizer que é o empreendedor quem de fato "faz tudo", pois sem sua disposição e capacidade para organizar, financiar e dirigir o empreendimento, seus empregados não teriam trabalho e nem receberiam salários antes que um único produto fosse fabricado e vendido.
A apreciação deste último ponto é de importância crucial. O empreendedor não é somente o organizador da empresa e o investidor que faz tudo acontecer; ele também é quem irá arcar com as consequências caso não obtenha um lucro pelos seus esforços empresariais.
Empreendedores arcam com a incerteza de planejar para o futuro
Os trabalhadores e todos os demais que fornecem ao empreendedor os bens, serviços e recursos necessários para que todo o processo de produção ocorra recebem seu pagamento enquanto o trabalho está sendo feito.  Já o empreendedor arca com toda a incerteza sobre se irá ganhar ou não o suficiente com a venda de seus produtos para cobrir todas as despesas nas quais incorreu.  Ele, aliás, nem sequer sabe se conseguirá vender seu produto.
Ao pagar aos seus empregados os salários que foram acordados por contrato, o empreendedor os alivia da incerteza a respeito de se, no final do processo, haverá lucro, prejuízo, ou se a empresa ficará no zero a zero.
É o empreendedor quem tem de fazer os julgamentos especulativos e criativos sobre o que produzir e a que preços seus produtos poderão ser vendidos. A precisão deste juízo empreendedorial em conseguir antecipar melhor do que seus concorrentes aquilo que seus consumidores podem querer comprar no futuro, bem como os preços que poderão pagar por esses bens, é o que determinará o sucesso ou fracasso de seu empreendimento.
Assim, Karl Marx errou completamente ao não entender o que determina o valor dos bens, o valor dos trabalhadores no processo de produção, e o papel vital e essencial do empreendedor, que é realmente quem faz com que as coisas aconteçam.
O mal decorrente das políticas baseadas em Marx
É de pouca importância se políticos e intelectuais que vêem trabalho, salários e empreendedores sob uma ótica de conflito de classes estão cientes do quanto suas concepções a respeito do capitalismo e do mercado de trabalho são implicitamente derivadas e influenciadas pelas ruminações obsoletas de um socialista revolucionário de meados do século XIX.
O que realmente importa é que políticas econômicas baseadas nesses equívocos marxistas a respeito da natureza e do funcionamento da economia de livre mercado irão gerar malefícios para aquelas mesmas pessoas a quem, supostamente, tais políticas deveriam ajudar.
E tais políticas equivocadas destruirão ainda mais os fundamentos essenciais do sistema de livre mercado, o qual, no decorrer dos últimos duzentos anos, deu aos homens uma liberdade pessoal e prosperidade material jamais ocorrida em toda a história humana. São políticas que destroem a liberdade que as pessoas possuem para trabalhar e se associarem livremente das maneiras que considerarem mais vantajosas, e que têm o potencial de levar a sociedade a um caminho ruinoso e conflituoso.
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Leia também:

Fonte deste Artigo: http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2324
KARL MARX E A DIFERENÇA ENTRE COMUNISMO E SOCIALISMO

No dia 10 de setembro de 1990, o multimilionário escritor, economista e socialista Robert Heilbroner publicou um artigo na revista The New Yorker intitulado "Após o Comunismo".  A URSS já estava em avançado processo de colapso. 
Neste artigo, Heilbroner recontou a história de como Ludwig von Mises, ainda em 1920, havia provado que o socialismo não poderia funcionar como sistema econômico.  Neste artigo, Heilbroner disse essas três palavras: "Mises estava certo".
Mas aí vem a dúvida: qual a diferença entre comunismo e socialismo?  Mises havia concluído que o socialismo não poderia funcionar, mas o que realmente entrou em colapso foi um sistema rotulado comunismo.  Há alguma diferença?

História
Quando Karl Marx e Friedrich Engels começaram a escrever conjuntamente, no ano de 1843, Marx era a figura dominante.  Engels era um melhor escritor, e era ele quem sustentava Marx financeiramente.
Marx passou toda a sua carreira se opondo àquilo que ele chamou de "socialismo utópico".  Ele nunca interagiu com nenhum grande economista ou teórico social.  Você pode procurar, mas jamais encontrará qualquer refutação sistemática feita por Marx a Adam Smith, por exemplo.  Marx gastou suas energias criticando verbalmente vários autores de esquerda, cujos escritos praticamente não tiveram nenhuma influência sobre a Europa em geral.
Dado que ele estava constantemente atacando autores socialistas, Marx criou uma teoria própria sobre o comunismo.  Ele chamou essa sua teoria sobre o comunismo de "socialismo científico".  Marx argumentou que, inerente ao desenvolvimento da história, há uma inevitável série de etapas.  Isso significa que ele era um determinista econômico.  Ele acreditava que o modo de produção é fundamental em uma sociedade e que o socialismo seria historicamente inevitável porque haveria uma inevitável transformação do modo de produção da sociedade.
Todos os aspectos culturais da sociedade, sua filosofia e sua literatura formariam, segundo Marx, a superestrutura da sociedade.  Já a subestrutura — ou seja, seus fundamentos — seria o modo de produção.
Segundo Marx, sua análise econômica revelava uma inevitável linearidade dos vários modos de produção.  O comunismo primitivo levou ao feudalismo.  O feudalismo levou ao capitalismo.  O capitalismo levará a uma bem-sucedida revolução do proletariado.  O proletariado irá impor o socialismo.  E, do socialismo, surgirá o comunismo.
Esse processo linear fecha o círculo.  Tudo começou com o comunismo primitivo, e tudo levará ao comunismo supremo.  Com o comunismo supremo, toda a evolução histórica estará completa. 
Só que Marx nunca explicou por que a evolução das etapas seria dessa maneira.  Ele nunca explicou por que não haveria outra revolução após a chegada do comunismo supremo, a qual levaria a um modo de produção maior que o comunismo.  Era mais conveniente apenas finalizar esse processo linear no comunismo.
A União Soviética jamais alegou ter chegado ao estágio comunista do modo de produção.  Ela sempre se disse socialista.  O nome do país era União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.  Os líderes supremos da União Soviética jamais alegaram que a URSS havia alcançado a etapa final do modo de produção.  Stalin promoveu o conceito de socialismo em apenas um país.  Ele diferia de Trotsky nesse quesito.  Trotsky queria uma revolução do proletariado em nível global.  Stalin era mais esperto.  Ele queria o poder e, sendo assim, ele sabia que, antes de tudo, teria de consolidar o poder em um país. 
Logo, Trotsky teve de fugir do país, e Stalin enviou o agente Ramón Mercader, do Comissariado do Povo para Assuntos Internos, para matá-lo na Cidade do México.  O agente matou Trotsky com um golpe de picareta em seu crânio.  Foi um ato cheio de simbolismo.  A picareta havia sido um dos ícones da história da Rússia.
O socialismo é a propriedade estatal dos meios de produção.  Mas Marx profetizou que o estado desapareceria sob o comunismo.  Ele nunca explicou como ou por que isso iria acontecer.  Sua teoria era bizarra.  Ele dizia que, para abolir o estado, era necessário antes maximizá-lo.  A ideia era que, quando tudo fosse do estado, não haveria mais um estado como entidade distinta da sociedade; se tudo se tornasse propriedade do estado, então não haveria mais um estado propriamente dito, pois sociedade e estado teriam virado a mesma coisa, uma só entidade — e, assim, todos estariam livres do estado.
O raciocínio é totalmente sem sentido.  Por essa lógica, se o estado dominar completamente tudo o que pertence aos indivíduos, dominando inclusive seu corpo e seus pensamentos, então os indivíduos estarão completamente livres, pois não mais terão qualquer noção de liberdade — afinal, é exatamente a ausência de qualquer noção de liberdade que o fará se sentir livre.
Igualmente, Marx nunca mostrou como o sistema de produção poderia ser organizado nessa etapa suprema do comunismo, na qual não haveria nem um livre mercado e nem um planejamento centralizado pelo estado.  Ele nunca forneceu qualquer detalhe sobre como seria uma sociedade comunista, exceto em uma breve passagem que foi publicada em um livro escrito conjuntamente com Engels e com o homem que os havia apresentado em 1843, Moses Hess.  O livro foi intitulado A Ideologia Alemã (1845).  Só foi publicado em 1932.  Hess jamais ganhou créditos por sua co-autoria, mas parte do manuscrito aparece em sua coletânea de escritos.
Eis a descrição do comunismo:
Assim que a distribuição do trabalho passa a existir, cada homem tem um círculo de atividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual não pode sair; será caçador, pescador, pastor ou um crítico, e terá de continuar a sê-lo se não quiser perder os meios de subsistência.
Na sociedade comunista, porém, onde cada indivíduo pode aperfeiçoar-se no campo que lhe aprouver, não tendo por isso uma esfera de atividade exclusiva, é a sociedade que regula a produção geral e me possibilita fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar da manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo isto a meu bel-prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico.
Esta fixação da atividade social, esta petrificação do nosso próprio trabalho num poder objetivo que nos domina e escapa ao nosso controlo contrariando a nossa expectativa e destruindo os nossos cálculos, é um dos fatores principais no desenvolvimento histórico até aos nossos dias.
Não obstante o fato de que há aproximadamente 70 volumes das obras de Marx e Engels, essa é a passagem mais longa que descreve o funcionamento de uma sociedade comunista e de como seria a vida sob esse arranjo.
Conclusão
Socialismo foi o sistema que realmente foi colocado em prática.  Comunismo pleno nunca existiu e não passa de uma utopia cujo funcionamento jamais foi explicitado em trechos maiores do que um parágrafo.
Sem uma economia monetária — ou seja, sem uma economia em que os cálculos de lucros e prejuízos são possibilitados pelo dinheiro — é impossível haver uma ampla divisão do trabalho. 
E sem um livre mercado para todos os bens, mais especificamente para bens de capital, é impossível haver um planejamento econômico racional.
A propriedade comunal dos meios de produção (por exemplo, das fábricas) impede a existência de mercados para bens de capital (por exemplo, máquinas).  Se não há propriedade privada sobre os meios de produção, não há um genuíno mercado entre eles.  Se não há um mercado entre eles, é impossível haver a formação de preços legítimos.  Se não há preços, é impossível fazer qualquer cálculo de preços.  E sem esse cálculo de preços, é impossível haver qualquer racionalidade econômica — o que significa que uma economia planejada é, paradoxalmente, impossível de ser planejada. 
Sem preços, não há cálculo de lucros e prejuízos, e consequentemente não há como direcionar o uso de bens da capital para atender às mais urgentes demandas dos consumidores da maneira menos dispendiosa possível. 
Em contraste, a propriedade privada sobre o capital em conjunto com a liberdade de trocas resulta na formação de preços (bem como salários e juros), os quais permitem que o capital seja direcionado para as aplicações mais urgentes.  Ao mesmo tempo, o julgamento empreendedorial tem de lidar constantemente com as contínuas mudanças nos desejos dos consumidores. 
O arranjo socialista simplesmente impede que esse mecanismo ocorra.  Foi por isso que Mises argumentou, ainda em 1920, que qualquer passo rumo ao socialismo é um passo rumo à irracionalidade econômica.
E foi a isso que Heilbroner se referiu quando ele disse que "Mises estava certo".
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Autores:
Hans F. Sennholz, 1922-2007, foi o primeiro aluno Ph.D de Mises nos Estados Unidos.  Ele lecionou economia no Grove City College, de 1956 a 1992, tendo sido contratado assim que chegou.  Após ter se aposentado, tornou-se presidente da Foundation for Economic Education, 1992-1997.  Foi um scholar adjunto do Mises Institute e, em outubro de 2004, ganhou prêmio Gary G. Schlarbaum por sua defesa vitalícia da liberdade.
David Gordon, membro sênior do Mises Institute, analisa livros recém-lançados sobre economia, política, filosofia e direito. É também o autor de The Essential Rothbard
Gary North, ex-membro adjunto do Mises Institute, é o autor de vários livros sobre economia, ética e história. 
Leandro Roque, editor e tradutor do site do  Instituto Ludwig von Mises Brasil.

 Fonte deste Artigo: http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2063

sábado, 8 de outubro de 2016

O BRASIL A PARTIR DAS OBRAS “SOBRADOS E MUCAMBOS” 
E “RAÍZES DO BRASIL” 
     
Por Ivan M Fraga 

Ao lado das obras Casa-grande & Senzala e Ordem e ProgressoSobrados e Mucambos completa a famosa trilogia “Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil” escrita pelo polímato Gilberto Freyre (1900-1987). Sua primeira edição ocorreu no ano de 1936, mesmo ano de publicação de Raízes do Brasil do escritor paulista Sergio Buarque de Holanda (1902-1982). De lá para cá Sobrados e Mucambos passou por várias edições além de traduções para outros idiomas como o inglês, o alemão e o italiano[1].
   Assim como Casa-grande & Senzala e mesmo Raízes do Brasil , Sobrados e Mucambos é o resultado de um momento histórico onde as discussões no Brasil - ao menos àquelas encontradas nos círculos intelectuais da época - giravam em torno de temáticas como “a mestiçagem”, “o racismo científico[2]”, “o Biologicismo”, “o imigrante”, “a modernização e industrialização do Brasil” dentre outras questões. 
Somado a estes temas havia também uma busca pela identidade do brasileiro: quais as origens do Brasil? O que nos faz de fato brasileiros? O que nos faz diferente de outros povos? Quais as características do brasileiro? A estas questões, tanto Gilberto Freyre quanto Sergio Buarque de Holanda tentaram responder cada um ao seu modo. Enquanto Gilberto Freyre procurou romper com o paradigma racista da época, assumindo assim, pela primeira vez na história do Brasil, a importância do negro e, ao mesmo tempo, destacando também a rica contribuição portuguesa e indígena como fatores preponderantes para a formação civilizadora do Brasil; Sergio Buarque de Holanda, por sua vez, nos apresentou a figura polemica do “homem cordial” [3], “do aventureiro”, “do semeador” como traços singulares da formação do povo brasileiro.     
É quase impossível falar de Sobrados e Mucambos sem recorrer - ao menos uma vez - à outra grande obra de Gilberto Freyre que é Casa Grande & Senzala, pois como se sabe, Sobrados e Mucambos é uma continuação desta. Enquanto que em Casa-grande & Senzala Freyre aborda um Brasil colonial do séc. XVI e XVII analisando assim - por meio de uma espécie de micro-história - o poder do latifúndio e do sistema escravocrata através das relações entre a família patriarcal rural e escravos da senzala; em Sobrados e Mucambos nosso ensaísta, desta vez, trabalha toda a decadência deste mesmo patriarcado rural que começou a declinar na passagem do século XVIII para o sec. XIX com o processo de urbanização no Brasil, o que deu um salto com a chegada da côrte portuguesa. Nas palavras do antropólogo Roberto DaMatta, em“Sobrados e Mucambos” Freyre procurou:
Compreender um processo de transformação da hierarquia, diante das demandas mais individualizantes e igualitárias, determinadas pelo meio urbano. Ajustamentos que faziam com que as elites patriarcais relativizassem a família, os parentes, os compadres e amigos, para privilegiar inicialmente corporações e irmandades religiosas e, depois, partidos políticos e ideologias que formam a base da convivência moderna, uma sociabilidade marcada pela pressão em abolir a velha oposição entre a casa e rua, o conhecido e o anônimo, o intimo e o público, fazendo com que tudo seja governado por leis universais, válidas para todos em todos os lugares [4].
Dito isto, o objeto agora da investigação freyreana não é mais o cenário do Brasil rural; mas um novo Brasil marcado pelo crescimento das grandes cidades. A Casa Grande dar lugar aos grandes Sobrados o que é entendido como uma decadência. Conforme Freyre, esta decadência tem sua raiz no declínio da escravidão bem como nas pressões das forças da modernidade vindas do exterior. Assim, o senhor rural, que outrora detinha todo o poder (conforme nos é apresentando em Casa-grande & Senzala) agora encontra-se desprovido nos espaços dos grandes sobrados. Neste novo Brasil, a aristocracia encontra-se alojada nos sobrados urbanos enquanto que, na outra mão, os ex-escravos, agora libertos (porém não libertos de um sistema de marginalização provocada pela ausência de uma política de inclusão) se alojam em casas de pau-a-pique nos bairros pobres da cidade (os mucambos).
Freyre nos pinta um quadro de um Brasil em mudança. Como destacou o sociólogo Jessé de Souza, em Sobrados e Mucambos, acaba ocorrendo uma “ambiguidade” cultural brasileira a partir do embate entre a tradição patriarcal e o processo de ocidentalização” a partir da influência da Europa “burguesa”, e não mais portuguesa, que toma de assalto o país no séc. XIX[5]Souza está fazendo uma alusão ao processo nomeado por Freyre de “europeização”. Ora, o Brasil já não era influenciado por Portugal e, portanto, europeizado? – perguntará o leitor. Sim. Freyre não ignora a influencia de Portugal na formação do Brasil. Ao contrário, o antropólogo pernambucano é um dos poucos ensaístas a reconhecer esta influencia portuguesa na formação do povo brasileiro de modo positivo. Sendo assim, o que Freyre queria dizer com europeização? Esta “europeização” da qual Freyre nos apresenta em Sobrados e Mucambos diz respeito a uma nova Europa, isto é, a Europa industrial, comercial, mecânica, a Europa de burguesia triunfante, representada aqui no Brasil por alguns setores sociais que eram influenciados pelas novidades advindas da França, Itália, Alemanha e Inglaterra. Conforme Gilberto Freyre, esse período de europeização começou com Dom João VI; mas acentuou-se com Dom Pedro II. O resultado? Como destaca o próprio Freyre, tudo que era português foi ficando “mau gosto”; tudo que era francês ou inglês ou italiano ou alemão foi ficando “bom gosto”, iniciando assim, nas palavras de Jessé de Souza, “um processo que tinha elementos meramente imitativos do tipo para “inglês ver”[6].  Um produto bom não era mais aquele vindo de Portugal. Isso não dava mais prestígio à nova classe média que se formava no Brasil. A novidade agora eram as influencias – material e cultural- advindas dos outros países europeus aqui citados. Não por acaso, durante um bom tempo o Brasil se rendeu aos encantamentos da França.
Deste modo, ao longo dos doze capítulos de Sobrados e Mucambos, novamente recorrendo a Jessé de Souza, Freyre procura mostrar que, com a urbanização, “a hierarquia social passa a ser marcada pela oposição entre valores europeus burgueses e os valores anti-europeus do interior, marcando uma antinomia valorativa no país com repercussões que nos atingem ainda hoje”[7]. Freyre observa que a casa patriarcal perdeu, nas cidades e nos sítios, muitas de suas qualidades antigas: os senhores dos sobrados e os negros libertos, ou fugidos, moradores dos mucambos,  foram se tornando extremos antagônicos. Somado a isto, nosso autor relata, ainda no primeiro capitulo o aperfeiçoamento que aconteceu nas ruas. Os serviços urbanos se aperfeiçoariam e com eles – iluminação, calçamento, e, por fim, saneamento – os estilos de vida nas cidades mudavam. A vida ficaria mais livre da rotina doméstica. A rua – outrora só de negros, mascates, muleques – se aristocratizaria.
Não muito diferente de Freyre, foi Sergio Buarque de Holanda ao interpretar o Brasil no sentido de encontrar respostas para a questão da identidade do povo Brasileiro. Assim como Freyre, Sergio Buarque procurou investigar as origens do Brasil, porém, numa perspectiva um pouco diferente. Como pode ser evidenciado, a  obra Raízes do Brasil é diferente de Sobrados e Mucambos em diversos sentidos a começar pela estrutura gráfica dos dois textos. Enquanto Sobrados e Mucambos é formado por nada menos que onze capítulos formando um verdadeiro camalhaço com pouco mais de 800 paginas (entre capítulos e prefácios); Raízes do Brasil, ao contrário da obra de Freyre, é um livro curto com pouco mais de 200 paginas divido por sete capítulos acrescidos de prefácios e posfácios [8].
Além disso, percebe-se uma costura na escrita onde os dois autores procuram trabalhar ambos os textos de modo dialético dando maior destaque às dicotomias. O próprio título da obra de Freyre aqui analisada já começa com este “espirito dicotômico” – Sobrados e Mucambos. E assim neste dualismo seguem os títulos de cada capítulo da obra: Cap. 1 - A paisagem Social do Brasil Patriarcal durante o Sec. XVIII e XIX; cap. 2 - O engenho e a Praça, a Casa e a rua;  Cap. 3 - O Pai e o Filho; Cap. 4 - A Mulher e o homem; Cap. 5- O Sobrado e o Mucambo; cap. 7 - O Brasileiro e o Europeu  e assim por diante. Não muito diferente foi Sergio Buarque com Raízes do Brasil: Cap. 2 – Trabalho & Aventura; Cap 3 -  O semeador e o Ladrilhador.
Como bem observou Antônio Candido no prefácio do livro: “Raízes do Brasil é construído sobre uma admirável metodologia de contrários que alarga e aprofunda a velha dicotomia da reflexão latino-americana. Em vários níveis e tipo do real, nós vemos o pensamento do autor se constituir pela exploração de conceitos polares” [9]. Estes contrários podem ser percebidos de modo mais claro nos capítulos já destacados: Cap. 2 – Trabalho & Aventura e Cap 3 -  O semeador e o Ladrilhador.
Em Trabalho & Aventura, por exemplo, Sergio Buarque faz uma distinção entre os homens da seguinte forma: 1) O trabalhador – aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o triunfo a alcançar; 2) O aventureiro – aquele que busca novas experiências, acomoda-se no provisório e prefere descobrir a consolidar. Neste sentido, Sergio observa que há uma ética do trabalho e uma da aventura. Assim, a ética da aventura é a que vai marcar o processo da colonização do Brasil feita pelos portugueses o que, semelhante a Gilberto Freyre, Sergio Buarque vê também de modo positivo. Novamente como destacou Antônio Candido: “O português manifestou uma adaptabilidade excepcional, mesmo funcionando “com desleixo e certo abandono” (p.43); em face da diversidade reinante, o espirito de aventura foi “o elemento orquestrador por excelência (P.46)” [10]      
Afora as dicotomias encontradas em Raízes do Brasil, se tem um capitulo que gerou várias interpretações e, por isso mesmo, uma série de mal entendidos, este foi o capitulo cinco cujo título é “ O Homem Cordial”. Assim como Gilberto Freyre precisou se explicar diante de uma série de passagens de seus livros, sobretudo o de Casa Grande & Senzala (talvez mais que Sobrados e Mucambos), o mesmo aconteceu com Sergio Buarque de Holanda com o seu conceito de “homem Cordial” tomado emprestado de Ribeiro Couto. Ao contrário do que se propagou,“O homem cordial” de Raízes do Brasil não tem nada a ver com bondade. Como explicou Antônio Candido: “O homem cordial não pressupõe bondade...o homem cordial é visceralmente inadequado as relações impessoais que decorrem da posição e da função do indivíduo, e não da sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários”[11].  Em outras palavras, “o brasileiro recebeu o peso das “relações de simpatia”, que dificultam a incorporação normal a outros agrupamentos”[12].
Aqui está uma chave de interpretação para compreendermos alguns comportamentos do brasileiro, sobretudo para entendermos a forte presença do patrimonialismo por estas terras. Holanda consegue, pela primeira vez, explicar o fato do brasileiro ter dificuldades de separar o público do privado. No Brasil, em muitos casos, o espaço público acaba sendo uma extensão da vida privada o que acaba atrapalhando a atuação do Estado, uma vez que este mesmo Estado deve (ou deveria) atuar de modo impessoal. É comum no Brasil não haver uma distinção entre o público e o privado. De modo teórico temos até esta distinção clara, mas a prática acaba sendo outra. Sobre isto escreveu Robert Wegner:
O homem cordial age a partir dos sentimentos que brotam diretamente do coração sem um filtro de racionalidade. Neste sentido, não trata com isenção amigos e inimigos, favorecendo em qualquer circunstancia os primeiros em detrimento dos outros. Por isso, para o autor, a cordialidade é inadequada para a democracia e da burocracia, que exigem normas e leis abstratas que sejam aplicadas a todos da mesma forma[13].
Por ultimo, o que talvez mais aproxime Sobrados e Mucambos de Raízes do Brasil seja o contexto da transição do Brasil rural para um Brasil urbano - a  modernidade e urbanização do Brasil. Tanto Gilberto Freyre a partir de Sobrados e Mucambos quanto Sergio Buarque a partir de Raízes do Brasil procuraram trabalhar este recorte temporal. No caso de Raízes do Brasil, esta aproximação com a urbanização é apresentada por Sergio Buarque nos capitulo 6 (Novos tempos) e 7 (Nossa revolução). “Nossa Revolução” é apresentada por Sergio Buarque como a fase mais dinâmica a qual teve inicio em meados do sec. XIX, do processo de dissolução da velha sociedade agrária, cuja base foi suprimida pela abolição. O contexto analisado por ambos os autores é justamente o processo de urbanização do Brasil. No caso de Raízes do Brasil, novamente recorremos a Wegner quando este destaca que: “Sergio Buarque também diagnóstica um lento mas continuo processo de mudanças na sociedade brasileira, iniciada com a transferência da corte para o Brasil em 1808(...) As mudanças se dão na direção da urbanização, imigração dos europeus e industrialização, e significam a corrosão gradual do predomínio rural, que, na verdade, seria a fonte alimentadora da cordialidade”[14].      

        No geral Sobrados e Mucambos e Raízes do Brasil podem ser tomadas como uma contribuição para a compreensão desta fase da história do Brasil sob duas perspectivas aproximadas, porém, cada qual escrita de modo original e singular por seus autores. Ambos os autores se debruçam sobre o processo de modernização e urbanização do Brasil o que permite ao pesquisador ver o Brasil por duas lentes diferentes. No mais, as leituras das obras de Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda continuam sendo exercícios obrigatórios para todo aquele que deseja compreender a formação do povo brasileiro.    


Referencias Bibliográficas   
                                          
- CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil, In: HOLANDA, Sergio. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: C&a das Letras, 1995. 
- DaMATTA, Roberto. “O Brasil como morada: apresentação para Sobrados e Mucambos”, in: FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimentourbano, São Paulo, Global, 2003. 
- FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimentourbano, São Paulo, Global, 2003. 
- HOLANDA, Sergio. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: C&a das Letras, 1995.
-  LOPES FERREIRA, Valdemir. Os prefácios de Sobrados e Mucambo: a história de um livro em busca do universal. 2011, 172 f, Dissertação (Mestrado em História). 
-  SCHWARCZ, Lilia; BOTELHO, André (orgs).Um Enigma Chamado Brasil: 29 interpretes e um país. São Paulo: C&a das Letras, 2009.  
-  SOUZA, Jessé. Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileiraTempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 12(1): 69-100, maio de 2000.


[1] Até o ano de 2006 a obra já tinha alcançado o numero de 15 edições somente no Brasil. Para um estudo mais detalhado sobre este assunto Cf: LOPES FERREIRA, Valdemir. Os prefácios de Sobrados e Mucambo: a história de um livro em busca do universal. 2011, 172 f, Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais – Universidade Federal de Ouro Preto, 2011. Disponível em: < http://www.repositorio.ufop.br/handle/123456789/2499> Acesso em: 20/03/2013.
[2] No que diz respeito à questão do “racismo Científico” no Brasil do final do sec. XIX e inicio do sec. XX podemos dizer que, em linhas gerais, existiam basicamente duas correntes: uma que defendia a ideia de superioridade racial e a outra que, para minimizar esta situação, defendia a ideia de branqueamento do país. Por exemplo, havia teóricos como o médico sanitarista Nina Rodrigues (1862-1906) que via os povos “não-brancos” definitivamente como inferiores. Para Nina Rodrigues tal “inferioridade” seria um fenômeno de ordem perfeitamente natural. Por outro lado - e não muito diferente - havia aqueles que acreditavam que era possível livrar o Brasil do “passado negro” através de um processo de branqueamento promovido por uma política de imigração responsável. Esta ideia foi defendida por intelectuais como Oliveira Viana (1883-1951), um dos ideólogos da “eugenia racial” no Brasil. Para mais detalhes sobre estes assuntos, Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: C&a das Letras, 1993.
[3] Homem Cordial é uma expressão de Ribeiro Couto a qual é citada por Sergio Buarque de Holanda. O termo é Ribeiro Couto, porém, o sentido é dado por Sergio Buarque. Sobre isto, ele escreveu: “Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um caráter definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal”. HOLANDA, Sergio. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: C&a das Letras, 1995.p. 106.
[4] DaMATTA, Roberto. “O Brasil como morada: apresentação para Sobrados e Mucambos”, in: FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimentourbano, São Paulo, Global, 2003, p. 16.
[5] SOUZA, Jessé. Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileiraTempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 12(1): 69-100, maio de 2000. p. 72.
[6] `SOUZA, 2000.p.98.
[7] SOUZA, 2000, p. 87.
[8]O livro Raízes do Brasil foi publicado originalmente em 1936 pela Editora José Olympio do Rio de Janeiro. O texto foi revisto pela última vez em 1967 no lançamento da quinta edição. A obra passou por algumas alterações que não afetou o conteúdo essencial do livro.
[9] CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil, In: HOLANDA, Sergio. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: C&a das Letras, 1995.p. 12.
[10] CANDIDO,1995, p.15.
[11] CANDIDO,1995, p.17.
[12] CANDIDO,1995, p.17.
[13] WEGNER, Robert. Caminhos de Sergio Buarque de Holanda, in: SCHWARCZ, Lilia; BOTELHO, André (orgs).Um Enigma Chamado Brasil: 29 interpretes e um país. São Paulo: C&a das Letras, 2009.p. 217
[14] WEGNER,2009.p.217
Fonte deste artigo: http://www.webartigos.com/artigos/o-brasil-a-partir-das-obras-sobrados-e-mucambos-e-raizes-do-brasil/108104/